quinta-feira, 18 de julho de 2024

Padre António Vieira (1608-1697)


Séc. XVII - Retrato de Arnold Van Westerhout
Padre António Vieira
Nasceu a 6 de Fevereiro de 1608 em Lisboa
Faleceu a 18 de Julho de 1697 em Salvador (Brasil)


História de um Naufrágio nos Açores


Em 1654, o célebre orador jesuíta, Pe António Vieira, sofre um naufrágio junto da ilha do Corvo, sendo salvo in extremis por corsários holandeses. É graças a este naufrágio que a devoção do terço se inicia nas ilhas dos Açores.

Logo após a sua subida ao trono, aquando da restauração de 1640, D. João IV encontra um Império Português em franca decadência. Com efeito, um mês e meio depois da conjura de 1 de Dezembro, Malaca cai em poder dos Holandeses. Mesmo após a celebração do Tratado de Aliança de 12 de Junho de 1641, os Estados Gerais das Províncias Unidas teimam em consolidar as suas posições em território português, conquistando Luanda a 24 de Agosto do mesmo ano e o forte de Achém, em Março de 1642.


Na mesma altura, o Pe António Vieira era enviado em missões diplomáticas a Haia e a Paris de modo a tentar obter o apoio de Mazarino para o resgate das terras brasileiras ocupadas pelos Holandeses. É também nesta altura que este clérigo propõe várias medidas revolucionárias que visavam combater o miserável estado do Reino, tais como o retorno dos judeus mercadores que se encontravam exilados pela Europa e a não confiscação, pela Inquisição, dos bens dos sentenciados.

FDC comemorativo do 300º aniversário da sua morte
Ao mesmo tempo que tentavam conquistar o Brasil pela força das armas, os Holandeses implementaram um formidável esquema de corso naval tendo aprisionado, só no ano de 1648, 249 navios dos 300 que normalmente percorriam anualmente o Atlântico. Como resposta a esta acção é criada, a 10 de Março de 1650, a Companhia Geral de Comércio para o Brasil que tinha como incumbência a protecção armada dos navios mercantes detentores do monopólio do trato do bacalhau, da farinha, do azeite, do vinho e do pau-brasil.

Será só em Janeiro de 1654 que se obtém a capitulação dos Holandeses residentes no Brasil, o que marcará a reconstituição do Brasil português tal como ele existia antes da junção das duas coroas ibéricas.

É também no ano de 1654, logo após a célebre Pregação aos Peixes - por falta de ouvidos da parte dos habitantes do Maranhão - que o Pe António Vieira parte para Lisboa, juntamente com dois companheiros, a bordo de um navio da Companhia Geral carregado de açúcar. Partia para, mais uma vez, defender junto do monarca os direitos dos índios escravizados contra a cobiça dos colonos.

Como era habitual nos navios ibéricos, a vida quotidiana a bordo era regida pelas práticas religiosas, conduzidas neste caso pelo Pe António Vieira, grande partidário da reza pública do terço do Rosário. Esta monotonia foi intempestivamente quebrada por uma tormenta desfeita que se abateu sobre o navio cerca de 2 meses após a sua partida do Brasil, já à vista da ilha do Corvo.

Subitamente, as vagas tornaram-se excepcionalmente altas; o mar ficou completamente coberto de espuma e a visibilidade ficou reduzida ao mínimo. Como única salvação, o piloto mandou arriar todas as velas, à excepção da do traquete e deixou o navio correr com o tempo, à capa. De repente, uma rajada mais forte arrancou a vela e fez adornar a embarcação, ficando o seu bordo direito sob as ondas. Imediatamente, os passageiros em pânico correram para o costado oposto em tropel confuso.


O Pe António Vieira, depois de a todos dar a absolvição geral, levantou a voz aos elementos e, bradou aos “Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas, que tendes a vosso cargo; olhai que aqui se perdem connosco.”

Após tal exclamação, fez com que todos fizessem voto à Rainha dos Anjos de lhe rezarem um terço todos os dias se, porventura, conseguissem escapar das garras da morte. Um quarto de hora esteve o navio adornado sob as ondas, até que os mastros se partiram. Com a sua quebra e com o peso da carga de açúcar que se encontrava estivada até ás escotilhas, o navio girou sobre si próprio e retomou a sua posição natural. Todos se apressaram a recolher ao convés e, de joelhos, prestaram graças à Soberana Mãe de Deus.


No entanto, sem mastros, sem velas, sem enxárcia e ao sabor dos elementos em fúria, a sua perdição tinha sido apenas adiada. Eis senão quando, ao longe, aparece outra nau que também corria com o tempo. Um nova esperança se levantava nos náufragos, esperança esta que depressa morreu com o afastamento do navio desconhecido. Este, cego ao navio destroçado e raso com o mar, acabou por mais tarde milagrosamente seguir uma derrota que o fez atravessar directamente a embarcação portuguesa a meio da noite.

Esta embarcação era um dos tais famosos corsários holandeses que cruzavam o Atlântico embusca de presas. Recolheram os náufragos a bordo, pilharam o que puderam do navio à deriva - que acabaria por ir a pique - e fizeram desembarcar os portugueses na ilha Graciosa após os terem despojado de todos os seus pertences pessoais.

Ermida da Boa Nova 
Para acudir à miséria dos seus quarenta e um companheiros de infortúnio, o Pe António Vieira valeu-se da sua Companhia de Jesus e do seu nome. Tudo fez para lhes providenciar roupa, calçado e dinheiro durante os dois meses em que permaneceu na ilha Graciosa. Foi também a partir da Graciosa que o Pe António Vieira creditou Jerónimo Nunes da Costa para que este fosse a Amsterdão resgatar os papéis e livros que lhe haviam sido tomados pelo corsário, tarefa esta que, ao que tudo indica, se cumpriu visto dispormos hoje de cerca de 200 sermões - um dos quais, o vigésimo sexto, relata este naufrágio - e 500 cartas deste autor, muitas delas anteriores ao naufrágio.


Quando conseguiu passar à ilha Terceira, a sua acção determinou também o aprestamento de uma embarcação para que todos os seus outros colegas de infortúnio pudessem tomar o porto de Lisboa.

O Pe António Vieira permaneceu na Terceira durante mais algum tempo, iniciando também aqui a devoção do terço, que pela primeira vez foi cantado na igreja da Boa Nova.

Da Terceira passou a São Miguel e daqui embarcou a bordo de um navio inglês para Lisboa, a 24 de Outubro de 1654. Quis a Providência que, mais uma vez, a sua viagem fosse marcada por um temporal que afligiu sobremaneira os passageiros portugueses - que se entregaram como de costume às habituais ladainhas em que como Católicos, como quem cria na outra vida, repetidamente se confessavam para morrer - mas que em nada preocupou os marinheiros ingleses que, talvez por serem hereges ou talvez por serem mais confiantes na sua embarcação do que os seus passageiros, se limitaram a comer como se nada fosse, embalados que estavam pelo canto dos canários-da-terra que levavam a bordo.

1685 - A Inquisição em Portugal


E foi assim que, em Novembro de 1654, aportou ao Tejo o homem que acabaria por falecer na Baía, cego e surdo, a 18 de Julho de 1697. Durante a sua vida passara mais de 10 anos a lutar pela independência de Portugal, outros tantos a lutar pelos direitos dos índios da Amazónia e outros sem fim a combater os inquisidores de Coimbra. Estes, que o fizeram encarcerar de Fevereiro de 1663 a Outubro de 1665 e que o forçaram a ouvir durante duas horas, de joelhos, a enumeração das suas culpas e que o proibiram de sair do reino e de usar de voz activa e passiva, viram a sua Inquisição suspensa durante 27 meses graças à acção do Pe António Vieira. Este feito único só não se prolongou por mais tempo e conduziu à extinção da Inquisição em Portugal porque os bispos portugueses ameaçaram a Santa Sé com um cisma da igreja nacional.




Foi também assim que este grande orador - a quem Fernando Pessoa apelidou de Imperador da Língua Portuguesa - e verdadeiro Homem de Deus escapou (por milagre divino?) da morte ao largo dos Açores.

 Autor do texto: Paulo Monteiro






Nova Portugalidade (11-06-2020)



Terroristas infamam o Padre António Vieira

Alertados por um seu associado, dois membros da direcção da Nova Portugalidade deslocaram-se há poucos minutos ao Largo da Misericórdia para confirmar um acto de vandalismo, cobarde e infame, perpetrado contra a estátua do Padre António Vieira. O crime foi cometido um dia após o 10 de Junho, nossa festa nacional. Tal não é coincidência. Tem a Nova Portugalidade seguido atentamente o trajecto e manifestações de ódio contra a presença desta evocação do Imperador da Língua Portuguesa e Apóstolo do Brasil, podendo sem dificuldade e erro saber quem são os inspiradores, mandantes e executores deste acto de terrorismo cultural. Perante a maré de banditismo cultural que se espraia pelo Ocidente, tudo faremos para prestar todo o apoio às autoridades na localização dos inimigos da paz social que elementos extremistas, colonizados mentais por algumas universidades americanas e inimigos da cultura, querem perturbar.











ENSAIO EM DEFESA DE VIEIRA

Neste tempo em que informação corre em um instante de uma ponta à outra do mundo, a estupidez e a ignorância continuam a propagar-se mais ligeiras do que a inteligência e o conhecimento. Descontando o meio como causa desta desgraça, posto que é eficacíssimo, forçado sou a culpar os humanos, cujo intelecto é naturalmente indolente e predisposto a aderir com toda a força da sua convicção a proposições pouco fundadas. Como aplicação particular desta tendência universal, algum dia teria que ser dobrada em português a fúria que nos Estados Unidos da América se devota a estátuas erguidas em honra dos heróis da Confederação, contanto não se verifiquem na sociedade portuguesas as fundas linhas de divisão que a História ali sulcou.

É um princípio de ética filosófica que ninguém deve ser julgado e muito menos condenado pela aplicação de uma lei que não estava promulgada ao tempo da prática dos actos julgados. Seria tão ridículo e injusto como se algum dos nossos contemporâneos fosse sentenciado à morte por visitadores do futuro, em estrita aplicação de uma lei dos vindouros, que não conheceria, que não compreenderia e que, provavelmente, reputaria como absurda. É provável que a posteridade, se entretanto não crescer em inteligência, nos venha também a condenar inapelavelmente como bárbaros por práticas que se nos afiguram como perfeitamente lícitas. É possível, se é que não é inevitável, que no futuro nos cubram de opróbrio por nos alimentarmos de bife da vazia, por conduzirmos carros a gasolina ou por consentirmos no trabalho assalariado. Um dia, a estátua a derrubar será a nossa. Mas a repetição do erro não o converte num acerto. Continuará a ser, como o é agora, um absurdo moral. Mantendo os olhos fixos nesta premissa de sã filosofia, convém agora explicar qual é o contexto histórico, económico e moral da instituição esclavagista na época em que António Vieira viveu.

Durante milénios, a escravatura era tida como necessária e legítima, quando não uma condição natural e congénita da humanidade, não apenas na Europa, mas na África e na Ásia. Esta atitude era determinada por aquilo que podemos designar, numa expressão com sabor marxista, como condições materiais de base. Antes do advento da máquina, a força motora da actividade produtiva residia nos músculos de humanos e animais. A escravatura apresentava-se, mesmo aos mais esclarecidos, não raras vezes, como um mal, mas como um mal necessário. Para os que não chegaram a conhecer as maravilhas da mecânica, do vapor e da electricidade, que uma parte da humanidade que trabalhar forçadamente para benefício de todos deveria parecer, deveras, como uma ordem inalterável do universo. Pelo menos, aparentaria ser um alicerce da estrutura económica da sociedade.

Não faltaram teorizadores cristãos que reconheceram a miséria da instituição esclavagista e que tentaram, não tanto justificar a sua existência, como compreendê-la à luz da revelação cristã. Comenta-se, não raro, que São Paulo, com as carta aos Efésios aprovou a escravatura, conquanto com a carta a Filémon tenha instruído os senhores na docilidade para com os servos. Mas, na verdade, São Paulo nunca aprovou a escravatura, porque São Paulo, salvo melhor opinião, nunca se colocou a questão de optar entre a sua continuidade ou a sua abolição. Paulo de Tarso, como toda a sua geração, como toda a Antiguidade, aceitava a escravatura como uma inevitabilidade. Três séculos mais tarde, Santo Agostinho, que se apercebeu vividamente da contradição entre o dogma da bondade da criação divina e a infeliz condição dos escravizados, não se esforçou por justificar a existência da escravatura, mas por resolver satisfatoriamente a aporia em que essa existência enredava a teologia. É sugestivo que Agostinho considere a escravatura como salário do pecado - à semelhança da morte, da doença ou das dores de parto, outros tantos factos inelutáveis da existência humana. Quando o mundo acabara de sair das mãos do seu Artífice, sem a mácula original, tal como esses males, a escravatura não poderia existir. A escravatura é uma consequência e um sinal do naufrágio da humanidade no pecado. Também Agostinho, como Paulo antes dele, não concebe que possa haver mundo sem escravatura, e, portanto, não se põe a si mesmo a questão da sua aprovação ou desaprovação; encara-a, sim, como mais um afloramento do Problema do Mal. Paulo e Agostinho não eram revolucionários, com todo o peso que a palavra assume para os nossos contemporâneos: não se propunham abolir a escravidão por decreto; não desejavam transformar radicalmente as relações de produção; não queriam conspirar uma revolta espartaquiana. Como essas são as únicas revoluções que os nossos conhecem e reconhecem, necessário é que se quedem num desapontamento ou numa censura perante a posição cristã. Mas Paulo e Agostinho não eram materialistas, como nós o somos; eram espiritualistas. O seu interesse era outro, não terrenal, mas espiritual: o da conversão ao evangelho. Para este efeito, não conta tanto a liberdade de corpo, como a liberdade de alma; e, para este efeito, não há judeu nem grego, nem escravo nem senhor. Deus, declara Paulo, não faz acepção de pessoas. Esta afirmação, que é das principais da doutrina cristã, é revolucionária. Antes, os judeus criam que Deus fazia acepção entre povos: entre o povo eleito e os gentios. Criam, também, que fazia acepção entre pessoas: os que eram abençoados pela fortuna, eram abençoados pelo próprio Deus, e os que eram por ela abandonados, eram por Ele amaldiçoados. Por esta razão é que os discípulos perguntam a Jesus, ao aproximarem-se do cego de nascença, quem é que tinha pecado para que acontecesse aquela cegueira, o cego ou os seus pais. Cristo recusa a assunção em que assenta a pergunta: nem ele nem os pais. A maior ou menor miséria temporal dos homens não os diminuía diante de Deus. O escravo e o senhor eram iguais ante o Senhor dos senhores. É possível, até, que os primeiros gozassem de alguma vantagem.

Na Europa, a escravatura antiga foi progressivamente substituída pela servidão feudal. Nesta morosa mas inexorável extinção, teve parte, como causa, a doutrina cristã da fundamental igualdade de todos os homens e a prática eclesial que a todos, senhores e escravos, acolhia nos sacramentos, como reconhece o insuspeito historiador francês Pierre Bonnassie, na senda que franquearam as incontornáveis investigações de Marc Bloch. A prática da escravatura, particularmente, a escravidão dos negros, é reanimada no contexto singular e especialmente complexo do conflito da Cristandade com o Islão na Península Ibérica e no Mediterrâneo. A guerra com o muçulmano travou-se por séculos e induziu à formação de uma doutrina generalizada da licitude da guerra contra o infiel invasor. A legislação do século XV reconhecia a legitimidade dessa guerra e, por consequência, a licitude da redução à escravidão dos prisioneiros feitos em combate. Apenas tendo em vista a atmosfera de cruzada da época se pode compreender a permissão conferida pela bula de Nicolau V, “Romanus Pontifex”, de 8 de Janeiro de 1455, para a submissão à escravatura dos sarracenos combatidos pelos Portugueses em África. Ordenação de tal espécie é o fruto de uma Europa encarniçada por séculos de incessante luta, tida como justa, contra o Crescente. Se, porém, o raciocínio em que se fundavam tais leis se podiam aplicar aos muçulmanos, por conta da guerra, não se podiam aplicar aos gentios com que os cristãos se depararam nas suas aventuras ultramarinas. Por esta razão, o Papa Eugénio IV, na bula “Sicut dudum”, de 13 de Janeiro de 1435, proíbe a escravidão dos nativos das Canárias e ordena a libertação imediata daqueles que já haviam sido subjugados pelos colonos europeus. Pela aplicação do mesmo princípio, o Papa Paulo III, com a bula “Sublimus Dei”, de 29 de Maio de 1537, depois de rejeitar em termos peremptórios a pretensão de que os indígenas das Américas eram mais brutos do que homens e incapazes de receber a fé católica, proíbe que sejam privados da sua liberdade e dos seus bens. Este circunstancialismo jurídico não deve ser perdido de vista quando se procura a causa da ambivalência da atitude dos colonizadores perante africanos e índios em tudo quanto concerne à escravatura. Mas, a estas razões, devem acrescentar-se outras, de facto, como o sejam o da escravatura estar disseminada em todo o continente africano, estando amplamente difundida e sendo activamente organizada dentro do mundo islâmico e o de existirem significativas redes de escravização e tráfico organizadas por nativos e contra nativos em África, o que, certamente, não sucedia com as Américas.

Vieira, que nasceu em 1608 e não morre verdadeiramente, inseriu-se num tempo em que a escravatura era vista como um expediente legítimo e em que a escravatura negra se encontrava amplamente disseminada. Quando desembarcou nas Américas, os escravos constituíam o alicerce da sociedade colonial, porque eram mão-de-obra imprescindível na exploração económica do território. É pueril reclamar-se de um homem imerso nas circunstâncias materiais e nas ideias comummente aceites e em nenhuma parte disputadas no seu tempo que se destaque delas como se tivesse tido a oportunidade de mergulhar por um momento a cabeça no nosso iluminado século. A atitude de Vieira é a de um depositário da tradição cristã inaugurada com Paulo e prosseguida por Agostinho. Se não disputa a escravatura, também não a apoia propriamente - aceita-a, como um facto dado. Mas os olhos com que olha o escravo são aqueles da universal fraternidade cristã, pois escreve no Sermão da Epifânia: «As nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do sol. E pode haver a maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto? Dos Magos, que hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto, como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de S. José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem e adoram a Cristo, como os Magos.» Diferentes no corpo, e na condição, mas radicalmente iguais na alma. E para Vieira, que era um espiritualista, e um católico, que podia haver de maior do que a saúde das almas? Hoje, não há quem entenda bem isto, porque são poucos os espiritualistas e ainda menos os católicos. Mas houve poucos que, como Vieira, se tenham batido pela liberdade dos índios. Vieira é, certamente, filho do seu tempo no que concerne à atitude perante a escravatura negra, nos exactos termos que expliquei atrás. Mas nunca isentou os negros, como não isentou os índios, daquela fundamental igualdade por natureza e pelo evangelho, que para ele era a principal.

Não é concorde com o mais elementar raciocínio ético condenar o Padre António Vieira em razão de uma lei moral condenatória da escravatura em absoluto que não foi promulgada na consciência social no tempo da sua vida. Mas não é somente esta a fragilidade do argumento dos seus actuais detractores. Na verdade, pode ser que o seu maior erro seja o de tentar reduzir o Padre à pequenez das categorias pelas quais avaliam o mundo e a história. Nelas só pode caber um Vieira mutilado, não o homem inteiro. Através desse buraco de fechadura, os organizadores do protesto apenas podem ver o clérigo que consentia na escravatura dos africanos, como se o jesuíta não tivesse nascido num mundo que pensava da mesma forma e não tivesse sido senão isso. Esse ponto de vista é tão unilateral como qualquer outro. Porque não veremos em Vieira, antes, o homem que, contra inúmeras resistências e com grande dose de coragem pessoal, se opôs publicamente à redução dos indígenas à escravatura? Porque não veremos, antes, o sacerdote católico que, arriscando-se a acordar ânimos de suspeição junto do Santo Ofício, se propôs a defesa pública dos cristãos-novos? Porque não veremos, antes, o genial homem de letras, que como ninguém, na língua portuguesa ou em qualquer outra língua, falou da virtude, da morte e de Deus? Apenas um retrato que contenha todos esses elementos pode ser uma imagem fiel do Padre António Vieira. Já a efígie que os organizadores do protesto querem oferecer às chamas é falsa, porque é desfocada, parcial e imprecisa. Aliás, se julgássemos todas as personalidades históricas com o rigorismo com que o faz a organização «Descolonizando» em relação ao Padre, teríamos, praticamente, de derribar todas as estátuas que se erguem em Lisboa e em qualquer outra das nossas cidades, porque não há nenhum grande homem, como nenhum grande empreendimento humano, que não possa ser observado de modo a encontrar-lhe qualquer mácula.

Talvez os membros da organização «Descolonizando» já saibam estas coisas. Porque se há algo de certo neste caso é que a finalidade da polémica contra o Padre António Vieira não tem tanto a ver com o Padre António Vieira, nem esta guerrilha contra o passado tem tanto a ver com o passado, como têm a ver com os vivos e com o presente. Tem a ver com um golpe publicitário, com uma iniciativa de mobilização, como uma tentativa de radicalização, com uma campanha, mais uma, de descrédito da pátria e da Igreja Católica, mas muito pouco a ver com o estudo diligente e a interpretação racional da História.

Para a Nova Portugalidade o Padre António Vieira é um grande português. Penso que é uma dessas afirmações que merece ser sucedida por um decidido ponto final.

Hugo Dantas





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