Texto: Helena Fagundes/Diário Insular
Nasceu na Praia da Vitória, ilha Terceira, a 15 de Dezembro de 1871, faleceu em Lisboa a 7 de Junho de 1938. Afirmou-se como médico no Porto, foi o primeiro ministro da Instrução.
António Joaquim Sousa Júnior foi também o homem que travou a peste na Terceira e que se ofereceu para chefiar um hospital militar durante a I Guerra Mundial. Deixou tudo pelo Porto Martins, onde passou mais de uma década ao balcão de uma venda, ao som de uma grafonola... Era o senhor Doutor.
O senhor Doutor debruça-se sobre o balcão da venda, ali quase onde se vira para a Poça, no Porto Martins. À sua volta estão vinho para vender à caneca, botões, pão, queijo de peso. Ao seu lado, uma elegante grafonola canta árias de ópera. E o pensamento recua, para o tempo em que era criança...
António Joaquim Sousa Júnior nasceu na Praia da Vitória, em 1871, numa casa à entrada da Rua de Jesus. Os pais não eram ricos, mas foi prosseguindo estudos, primeiro no Seminário de Angra do Heroísmo e, depois, com o apoio de umas tias da cidade, no Porto, onde se fez médico.
Lá fez a sua carreira científica. Foi director da Faculdade de Medicina do Porto e um dos médicos mais respeitados do seu tempo. No país, assumiu papeis políticos de relevo. O fim da vida levou-o a um Porto Martins simples, uma terra de pescadores.
No seu escritório da Casa da Rua da Sé, forrado com estantes de livros, o historiador Jorge Forjaz recorda a história de António Joaquim Sousa Júnior, o Doutor Sousa Júnior, avô da sua esposa. Um homem brilhante, um humanista, mas cuja vida seria sempre um duelo entre a luz e as sombras. Em termos políticos, Sousa Júnior esteve inicialmente ligado ao Partido Progressista, mas transitou rapidamente para o Partido Republicano.
Quando chegou a República, em 1910, foi convidado para reitor da Universidade de Coimbra, mas acabou por não tomar posse, apesar de ter sido nomeado. Foi director geral da Estatística, montando no país um sistema que foi considerado dos mais modernos da Europa do seu tempo e foi o primeiro ministro da Instrução, distinguindo-se, no governo de Afonso Costa, pela criação de escolas móveis. O objectivo era levar a alfabetização aos vários lugares do país. A Primeira República foi conturbada e os ministros erguiam-se e caiam facilmente. Foi duas vezes ministro da Instrução, em dois governos. Outro lugar ocupado foi como deputado da Assembleia Constituinte.
A peste
A maior marca de Sousa Júnior na Terceira foi como médico, no tempo da peste bubónica.
Epidemiologista, já se tinha notabilizado no combate à peste no Porto. Já professor na Faculdade de Medicina do Porto, em 1908, a ilha chamou-o.
A terrível doença tinha-se instalado e espalhava-se a uma velocidade impressionante.
Poucos se salvavam. "Hoje em dia, os médicos defendem-se, mas naquele tempo ele metia-se no meio dos pestosos, com uma capacidade de protecção pequeníssima, e tinha de combater a peste, com os meios escassos que havia na época", conta Jorge Forjaz.
"Quando a peste rebentou aqui na Terceira, em 1908, ofereceu-se para vir, sem nenhum encargo para ninguém. A faculdade desligou-o do serviço e ele ficou meses seguidos na ilha".
Permaneceu na ilha perto de um ano, em que tomou várias medidas, compreendidas pelas autoridades locais, mas contestadas por alguns sectores da sociedade. Uma das mais polémicas foi fechar os portos à navegação.
Assim, a peste não saía da Terceira e as outras ilhas permaneciam a salvo.
Na altura, multiplicaram-se os protestos do comércio local, que se via sem poder exportar ou importar. Os jornais da época também tomaram partidos.
Uns, defendiam o Doutor, outros, chamavam-no "Sousa das Ratas", inspirados noutra das medidas, a criação de uma Liga contra os Ratos, os grandes veículos de propagação da doença.
Para a criação da Liga contra os Ratos juntaram-se as mais influentes e ricas pessoas da sociedade angrense. Entraram com capital, fizeram peditórios e avançaram com talvez um dos mais inteligentes passos para acabar com a peste: Ofereceram uma determinada quantia por cada rato apanhado. E, por toda a ilha, nasceram caçadores de ratos. Um homem, em 13 meses, caçou 2815 ratos e 15 mil murganhos. Ganhou 400 mil reis, muito dinheiro para a época. Os ratos tinham de ser trazidos para o edifício onde hoje está instalada a sede do Partido Socialista, onde ficava o laboratório. Eram queimados com petróleo, soltando um cheiro que durante anos ficaria na memória das casas vizinhas.
Durante os meses em que permaneceu na Terceira, Sousa Júnior escreveu catorze "Cartas dos Açores", que foram publicadas na Gazeta Médica do Porto, a contar os avanços e recuos da luta contra a peste.
Em 1909 deixou finalmente a ilha, em glória. Na viagem de regresso ao Continente, passou por São Miguel, onde o médico Bruno Tavares Carreiro deu um jantar em sua homenagem.
A guerra
Depois da peste, veio a guerra. A Primeira Guerra Mundial. Sousa Júnior ofereceu-se para ir para os hospitais militares, em França. Graduado major, assumiu o cargo de director de um hospital militar dos ingleses.
Foi em França que conheceu a maior tragédia da sua vida. Não a encontrou entre os soldados feridos que enchiam o hospital. Desenrolou-se, à distância, no Porto.
"Uma filha chamada Maria Júlia tinha morrido ainda criança. Dera o mesmo nome a uma segunda filha, que adoeceu quando o Doutor Sousa Júnior estava em França. Este pede licença para vir a Portugal e não autorizaram.
O comandante das tropas portuguesas na altura era Gomes da Costa, que é um dos homens que depois faz a revolução do 28 de maio. A filha morreu com ele ausente. Não era uma criancinha, tinha já 16 anos", explica Jorge Forjaz.
"Ele era uma pessoa com alguma tendência para a depressão e essa morte da filha afetou-o extraordinariamente. A partir de então, nunca mais foi a mesma pessoa. Ainda nasce uma outra filha, a que ele chamou Maria Júlia, que morreu há poucos anos", recorda.
Já minado pela depressão, Sousa Júnior regressa à Universidade do Porto, cidade onde foi ainda presidente do Senado Municipal. Nunca se deixou deslumbrar pela riqueza. Nesse cargo, tinha acesso a um Rolls Royce. Quando percorria as artérias portuenses, a viatura fazia sucesso entre a rapaziada, que corria a acompanhá-la. Muitas vezes, deixava os miúdos darem uma volta no carro de luxo. Quando chegava à Câmara, abria a porta e saia toda aquela gente.
"Dava consultas de graça, oferecia dinheiro para os remédios. No entanto, era o homem mais respeitado da sociedade médica do porto", afirma Jorge Forjaz. O humor pesado e as dificuldades de convívio iam-se, porém, agravando. Instalou-se na sua vida uma enorme depressão, que lhe amarrava o corpo. A mão tremia-lhe imenso e as suas últimas cartas eram já difíceis de ler. Foi nessa escuridão que decidiu regressar à ilha, em 1925.
O senhor Doutor do Porto Martins
A ideia inicial era apenas descansar por algum tempo. No entanto, Sousa Júnior ficou no Porto Martins, numa casa emprestada por um primo, durante 13 anos. Quando chegou à Terceira encontrou a moradia fechada, entregue à humidade. Recuperou-a e comprou a casa ao lado, onde montou uma venda, à moda das freguesias. A única coisa que fez questão de trazer do Porto foi uma grafonola e uma colecção de discos de música clássica. Na venda, frequentada por gente do Porto Martins e da Ribeira Seca, vendia um pouco de tudo. Muitas pessoas ouviram lá pela primeira vez o som de uma grafonola. Pelos caminhos da freguesia não passava um automóvel. Era um lugar pobre, sem electricidade ou água canalizada. Mas as noites de verão eram passadas ao luar. Durante o dia, o senhor Doutor vestia roupas simples e galochas de madeira, sentava-se com os vizinhos e fumava tabaco de enrolar.
Em 1929, por altura da comemoração do centenário da Batalha da Praia, realizou-se uma grande cerimónia e uma sessão solene na Câmara Municipal. Convidado para a ocasião, Sousa Júnior foi de carroça até à Praia e, ao chegar ao largo, saiu, abriu uma malinha e retirou as suas vestes de professor catedrático. Foi assim que surgiu na cerimónia, com toda a dignidade. Também se espalhou pela Terceira notícia de que o Doutor Sousa Júnior tinha chegado... A todos recebia e não cobrava. Vivia da reforma. Influenciou o espírito da freguesia. A Dona Florinda Pamplona, que morava ali perto, aprendeu a dar injecções e fazer curativos. Fez esse trabalho, durante décadas. Se alguém falava em senhor Doutor, esse senhor Doutor era Sousa Júnior.
Apesar de ter lutado sempre com estados de espírito mais negros, Sousa Júnior era dono de um apurado sentido de humor e de uma grande capacidade de improviso. A quem o importunava ou abusava da sua boa vontade enquanto médico, dedicava quadras, algumas bastante picantes... O fim da sua vida veio de forma simples, quase progressiva. Sentia-se velho... Um dia, teve a percepção de que ia morrer... Disse que queria voltar ao Porto para se despedir da sua gente. Voltou e morreu no Porto. Tinha 67 anos.
Deixou memória enquanto médico, professor catedrático, especialista no combate à peste, político... Que deixou tudo por um Porto Martins com caminhos de terra, sem automóveis ou electricidade, mas com o som do mar ali perto e uma venda de portas abertas para a simplicidade...
Sobre ele, personalidades como Vitorino Nemésio sentiriam o impulso de falar "sem protocolo nem pauta, com pura abundância de alma ".
Praça Dr. Sousa Júnior em Angra do Heroísmo |
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