sábado, 9 de novembro de 2019

A Ilha das Flores






A Ilha das Flores

Descoberta e povoamento


1869 - Mapa da Ilha das Flores
Nenhum diário de bordo, que tivesse chegado aos nossos dias, registou a descoberta das duas ilhas do grupo ocidental açoriano. Maugrado o seu posicionamento geográfico e afastamento em relação às demais ilhas do arquipélago – um tempo houve, até, em que os próprios documentos oficiais distinguiam as (sete) “ilhas dos Açores” das (duas) “ilhas das Flores”… –, há quem acredite que o primeiro avistamento das Flores e do Corvo, naturalmente fortuito e ocasional, possa ter ocorrido, ainda, durante o século XIV. Resta saber, porém, se as verosimilhanças encontradas entre os Açores e as supostas ilhas açorianas inscritas na cartografia da segunda metade de Trezentos – e estou a pensar não só no número mas também nos nomes com que algumas dessas ilhas foram baptizadas, como sucedeu com a Corvis Marinis e a San Zorso – são já consequência da passagem, por estas águas, de navios para aqui projectados por algum temporal ou em busca de ventos favoráveis para a viagem de retorno, ou se, pelo contrário, resultam simplesmente da influência fantasiosa dos chamados “Livros de Maravilhas”, tão em voga no final da Idade Média.

Seja como for, é a Diogo de Teive, armador de navios e escudeiro do infante D. Henrique, e a João do Teive, seu filho, que se deve a (re)descoberta destas duas ilhas, ocorrida durante uma dupla expedição que Cristóvão Colombo registou em suas notas, tal como a diz ter ouvido descrever ao piloto Pêro Velasco, um dos protagonistas dessa viagem. Na primeira parte da expedição, iniciada no Faial, Teive descobriu as Flores e o Corvo, provavelmente em 1452, já no final do Verão, mas a tempo, ainda, de rumar ao reino (não sem antes ter viajado até às imediações da península do Avalon, na Terra Nova), onde, a título de recompensa, obteve a 5 de Dezembro, por carta do infante D. Henrique, a concessão do monopólio do fabrico de açúcar na Madeira.

Dos Teives, seus “achadores” oficiais, passaram por contrato estas duas ilhas, em Janeiro de 1475, a Fernão Telles de Meneses, sem que uns nem outro, entretanto, tivessem feito grande coisa para incentivar a sua ocupação humana – os primeiros terão, talvez, nelas lançado algumas ovelhas, que simultaneamente lhes justificasse aquela posse e garantisse também apoio às suas viagens atlânticas para Ocidente, o segundo, membro do Conselho do Rei e com vastos interesses no comércio marítimo, morreu em 1477 de uma pedrada em Setúbal, pelo que foi já a sua viúva, D. Maria de Vilhena, na qualidade de tutora do filho, ainda menor, quem contratualizou com o flamengo Guilherme da Silveira (antes, Wilhelm van der Haegen) os direitos de exploração das duas ilhas do grupo ocidental.

Natural de Bruges, Flandres, onde nascera por volta de 1435, Guilherme da Silveira rumou pela primeira vez aos Açores cerca de 1469, a convite do 1.º capitão-donatário do Faial, Josse de Hurtere, trazendo sua fazenda em duas naus fretadas e fazendo-se acompanhar, também, pela família e por muita gente trabalhadora, “oficiais de todos os ofícios”. Desinteligências entre os dois fidalgos, porventura suscitadas pela distribuição de terras, levaram porém Guilherme da Silveira a trocar o Faial pela Terceira, onde viveu alguns anos nas Quatro Ribeiras, até que se dispôs a ensaiar nova aventura. Com as gentes que trouxera da Terceira, estabeleceu-se então, por volta de 1480, na ilha das Flores, na zona da Ribeira da Cruz, e ali viveu, durante sete a 10 anos, em “edifícios e casas bem lavradas” que mandara talhar na rocha de tufo. Pelo que relatam Gaspar Frutuoso e Diogo das Chagas, não teve ali, porém, grande sucesso nas suas lavouras de trigo e pastel, quer por ser a terra pouco “fundável e substancial”, quer por ser a ilha demasiado isolada e “muito tormentosa e combatida de ventos quotidianamente”. É tradição que procuraria obcecadamente metais – prata, dizem uns, ou estanho, como sugerem outros. Desgostoso, regressou então à Terceira e, daí, passou a São Jorge, última etapa da sua atribulada vida nos Açores, onde finalmente logra possuir “muitas terras, em que semeava seu trigo e pastel, e tantas criações de gado, que quase todo aquele Topo era seu”. Quando ali morreu, em dia de São Tiago, crê-se que por volta de 1510, era senhor de tantas fazendas que, só de dízimo, pagava cada ano “cinquenta e, às vezes, sessenta moios de trigo”.

Em definitivo, o povoamento das Flores só ocorreu, portanto, na primeira década do século XVI, quase de certeza um ou dois anos depois de 1504, data em que a posse da Capitania das duas ilhas do grupo ocidental passou dos Telles de Menezes a João da Fonseca. Desta feita, porém, as famílias trazidas pelo novo senhor das Flores e do Corvo, ainda que tomando a ilha, como reza a tradição, pela zona do porto da Amoreira, em Santa Cruz, logo se dispersaram por vários núcleos ao longo da costa, ocupando cada qual a data que lhes coubera na distribuição de terras. É a própria toponímia da ilha que sustenta esta tese, com várias fajãs – de Lopo Vaz, dos Valadões, de Pedro Vieira – e uns tantos ilhéus – de Álvaro Rodrigues, de Maria Vaz – a perpetuarem, decorridos que são já cinco séculos, os nomes de alguns desses primeiros colonos. No último quartel de Quinhentos, não só estavam já formalmente constituídas as três mais antigas paróquias das Flores – Santa Cruz, Lajes e Ponta Delgada –, por sinal bem afastadas umas das outras, como, um pouco por toda a ilha, se consolidavam também os núcleos embrionários – Gaspar Frutuoso refere-se especificamente aos Cedros, Caveira e Fajã – de futuras paróquias.

Criação das paróquias


A crer em frei Diogo das Chagas, bisneto de um dos primeiros povoadores da ilha, Santa Cruz nasceu, como povoado, à volta da já desaparecida Ermida de São Pedro. Em meados de Quinhentos, porém, a povoação, já feita vila, ganhara nova centralidade ao redor da sua primitiva Igreja Matriz, várias vezes devastada pelo fogo que lhe lançou a pirataria, mas outras tantas vezes, também, reparada de Santapalha, até que em 1627 foi finalmente reconstruída e coberta de telha. Desde muito cedo, todavia, começara a vila a ganhar a sua configuração central, de tal sorte que Gaspar Frutuoso já a descreve, cerca de 1589, como “vila muito chã e bem arruada”, ainda que as suas casas fossem cobertas todas de palha. Meio século depois, Diogo das Chagas, que escreveu o seu Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores entre 1646 e 1654, define a povoação onde nasceu como uma “vila mui bem assentada”, delimitada pelas ruas que saíam a primeira da barra de Santa Cruz e a última do porto das Poças, todas em direcção ao sopé do Monte Calvário (hoje, Monte das Cruzes), “com suas ruas cruzadas”. Em 1717, dela dirá também o padre António Cordeiro chegar “a mais de duzentos fogos, em sítio chão, e bem arruado, com quatro ruas que correm direitas ao mar, e as cortam várias travessas”. Às suas principais ruas já estavam então associadas, não apenas a Ermida de São Pedro e a Igreja Matriz (cuja prolongada reconstrução, ainda encetada em finais do século XVIII, haveria de lhe acrescentar um dos mais imponentes frontispícios de todas as igrejas do arquipélago), mas também as ermidas de São Sebastião e de Santa Catarina e ainda o Convento de São Boaventura, fundado em 1641 pelo padre Inácio Coelho.

Pelo seu desenho, Santa Cruz, por volta de 1815, apresentava-se já aos olhos do padre José António Camões como “digna de invejar-se para planta de uma belíssima cidade”. Mas, como também logo observa o antigo ouvidor eclesiástico das Flores e do Corvo, todas as suas principais ruas – das Poças, do Rego, de Santa Catarina, do Porto, Nova e de São Sebastião do Moio – e várias travessas não tinham, ao tempo, “regularidade alguma”, tal como sucedia com os seus edifícios. Dos 429 fogos recenseados na vila e seus arrebaldes, somente 113 eram cobertos de telha à época, e, de entre os 419 homens que habitavam os lugares da Ribeira dos Barqueiros, Vales, Pampilhal, Fazenda e Além da Ribeira (não há dados disponíveis para o centro da vila), nem um, sequer, usava calçado. A pobreza era então generalizada – os donatários da ilha (primeiro os Fonsecas, depois os condes de Santa Cruz, por último Pedro José Caupers, a quem a Coroa arrendara as chamadas “terras foreiras”), mais o aparelho político-militar e ainda o próprio clero, todos, cada um a seu modo, “esfolavam” quanto podiam o povo, que vivia em absoluta miséria. A denúncia é do próprio padre Camões: “São os habitantes da ilha das Flores talvez os mais pobres e miseráveis de todo o universo (excepto os do Corvo).”


Frei Diogo das Chagas
Em Ponta Delgada, descrita por Frutuoso como “freguesia de trinta vizinhos”, foi erigida a segunda paróquia do concelho, à volta da Ermida de Santo Amaro, segundo Diogo das Chagas, ainda que o seu orago seja, já desde o século XVI, o Apóstolo São Pedro. A sua igreja paroquial resulta da reedificação, em 1763, da antiga ermida com a mesma invocação, numa iniciativa do padre Francisco de Fraga e Almeida. Inicialmente, englobava também esta paróquia os lugares da Ponta e da Ponta Ruiva, os quais foram dela depois desanexados com a criação das paróquias das Fajãs (1676), o primeiro, e de Nossa Senhora do Pilar (1693), o segundo.

A terceira mais antiga paróquia, criada por alvará do deão da diocese (sede vacante) de 9 de Julho de 1693, é a de Nossa Senhora do Pilar, delimitada pelas ribeiras das Barrosas, a norte, e da Alagoa, a sul. À data, os dois lugares que a compõem – Cedros e Ponta Ruiva, desmembrados respectivamente das paróquias de São Pedro de Ponta Delgada e da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Santa Cruz –, tinham já 50 fogos com 176 almas. Com capela-mor e imagem da padroeira custeadas pelo conde de Santa Cruz, a sua primitiva igreja paroquial foi ampliada em 1719 e novamente reedificada em 1822, até que, por alegada pouca solidez das suas paredes laterais, acabou sendo demolida em Setembro de 1945 para dar lugar a um novo templo, cuja bênção ocorreu a 18 de Junho de 1954.

A José António de Sousa Bettencourt, um abastado proprietário natural da ilha Graciosa, se deve a construção da primitiva ermida do lugar da Caveira, que foi benzida a 22 de Dezembro de 1763 com a invocação das Almas Santas do Fogo do Purgatório. Ao tempo, os seus moradores (cento e tantas almas distribuídas por 32 fogos) estavam sujeitos, por “conveniência espiritual e corporal”, desde Julho de 1757, à paróquia de São Caetano do lugar da Lomba – ainda que esta pertencesse ao Concelho das Lajes – e assim se mantiveram até que, em 1833 ou 1834, a ermida da Caveira passou a paróquia, tendo como orago as Benditas Almas (desde 1954, Nossa Senhora do Livramento). A actual igreja paroquial, cuja primeira pedra havia sido lançada a 13 de Junho de 1870, foi dada por concluída a 11 de Setembro de 1880, com a bênção da sua capela-mor.

Pirataria


1862 - C.S.S. Alabama
Foi nas imediações da ilha das Flores – onde, de resto, tocou por três vezes, num curto espaço de 11 dias, a desembarcar prisioneiros – que o navio confederado C.S.S. Alabama, do capitão Raphael Semmes, deu início, no Verão de 1862, a uma implacável caçada (69 navios afundados em menos de dois anos) que teve como alvo privilegiado a navegação mercante da América unionista. Só entre os dias 5 e 18 de Setembro desse ano, aquele lendário cruzador capturou e incendiou, ao largo das Flores, a escuna Starlight, que viajava da Horta para Boston, e ainda as baleeiras Ocmulgee, Ocean Rover, Alert, Weather Gauge, Altamaha, Benjamin Tucker, Courser, Virgínia e Elisha Dunbar. À vista das ilhas do grupo ocidental, durante séculos “porta de entrada no retorno das frotas da Índia e da América às cercanias da Europa” e, por isso mesmo, também “palco de peleja dos donos do Mundo”, foi esta a última das grandes investidas do corso.

Nau Madre de Deus
(Museu da Marinha)
Quase três séculos antes, porém, já a ilha das Flores testemunhara aquele que, a par do resgate do imperador inca Atahualpa, pago ao conquistador espanhol Francisco Pizarro, constituía ao tempo um dos maiores saques da História – a captura, pelos corsários de sir Walter Raleigh, em Agosto de 1592, da nau portuguesa Madre de Deus.

As centenas de toneladas de especiarias, jóias e pérolas que aquela gigantesca nau da carreira da Índia transportava valiam, à época, qualquer coisa como meio milhão de libras, o equivalente a metade das finanças públicas inglesas. Impressionados com as dimensões da Madre de Deus (1.200 toneladas de deslocamento, três vezes mais do que a generalidade dos barcos ingleses), os corsários, que até costumavam afundar os navios capturados, resolveram, daquela feita, rebocar a sua presa dos mares das Flores até ao porto de Dartmouth e abrir a boca de espanto a toda a Inglaterra.

Remonta, todavia, a 9 de Setembro de 1591 aquela que ficou conhecida como a “Batalha da ilha das Flores”. Nesse dia, a esquadra de lord Tomas Howard, que se encontrava surta diante de Santa Cruz (possivelmente na baía da Ribeira da Cruz, onde Diogo das Chagas dirá depois ter visto ancorada, em 1597, a esquadra do conde de Cumberland, de 160 velas), lançou-se, precipitadamente, contra os barcos que surgiam de oeste, julgando pertencerem à armada espanhola provinda da Nova Espanha. Porém, em vez de encontrarem navios mercantes, mal armados, os ingleses depararam-se com a frota de defesa das ilhas, constituída por 40 navios de guerra, comandados por D. Alonso de Bázan, que lhes vinham dar caça. Consideravelmente mais pequena (22 navios), a armada inglesa, duramente fustigada pelo fogo inimigo, foi então obrigada a fugir como pôde. A excepção foi o Revenge, de sir Richard Greenville, que, tendo-se demorado em zarpar de Santa Cruz, acabou por ser capturado pelos espanhóis. Verdadeiramente épico, esse combate, que custou a vida a Greenville, seria depois glorificado por lord Alfred Tennyson no seu poema The Revenge: A Ballad of the Fleet [“At Flores in the Azores Sir Richard Grenville lay, / And a pinnace, like a fluttered bird, came flying from far away:” (…)], o qual, posteriormente, foi com notório sucesso musicado pelo compositor Charles Stanford.

Mas nem sempre foi conflituoso o relacionamento entre a pirataria e as gentes – e não apenas a arraia-miúda – das Flores. E nem sequer é difícil documentar situações em que, tanto aquela como estas, souberam, por interesse comum, cultivar uma convivência amistosa. Será disso exemplo maior o caso de Peter Easton, porventura o mais bem sucedido pirata do seu tempo – chegou a comandar 40 navios com alguns milhares de homens ao seu serviço, o que fazia dele o corsário mais temido no Atlântico Norte, e quando se “reformou” tinha uma fortuna pessoal avaliada em dois milhões de libras. Tanto quanto se sabe, o relacionamento deste pirata com a ilha das Flores remontará a Março de 1609, quando, andando já no corso, aqui fez, pela primeira vez, aprovisionamento de carne, água e lenha. Nos anos seguintes, sempre em Março, voltou à ilha, para fazer refresco e aguada, e, no verão de 1611, fosse por amor ou por simples conveniência, estava já de casamento marcado com uma filha do capitão-mor das Flores, de apelido Garro. Duplamente incomodado com os prejuízos causados pelos navios deste pirata e ainda com a cumplicidade entre florentinos e corsários, Filipe II ordenou, então, por decreto de 30 de Julho de 1611, que fossem tomadas as diligências necessárias à prisão do capitão Peter Easton. Poderoso e escorregadio, o Pirate Admiral nunca chegou a ser detido – mas nas Flores, dois anos depois, sob a acusação de acolher na ilha corsários estrangeiros, era preso o ouvidor e também capitão-mor Tomé de Fraga.

Comunicações e transportes


1890 - Flores -> América
Para a ilha das Flores, as comunicações e os transportes, até bem recentemente, sempre foram o seu mais doloroso “calcanhar de Aquiles”. Comunicar com o exterior, através da telegrafia, somente foi possível nesta ilha a partir de 1909, com a instalação da “Rádio-Flores”, e já estávamos em 1925 quando entrou ao serviço público a linha telefónica, ponto-a-ponto, entre as estações telegráficas de Santa Cruz e Lajes. Por essa altura, o vizinho Corvo, quando colocado em situações de emergência médica, comunicava-se com Santa Cruz, donde procurava socorro, através de sinais – três fumos de dia, três lumes à noite, com intervalos, feitos para os lados da Areia. E que dizer dos transportes?! Já na segunda metade do século XIX, o “serviço de paquete” entre esta ilha e a capital do distrito fazia-se, ainda, à vela, em pequeníssimas e frágeis embarcações como o iate Santa Cruz (36 ton.) ou a chalupa Flores (80 ton.), o primeiro perdido num temporal a 29 de Novembro de 1867 na baía de Porto Pim, na Horta, a segunda desaparecida a meio canal entre as Flores e o Faial, com 11 pessoas a bordo, na noite de 8 para 9 de Janeiro de 1874. Até ao estabelecimento das carreiras dos navios mercantes a vapor (o primeiro a escalar a ilha foi o Atlântico, da E.I.N., a 25 de Janeiro de 1875), a irregularidade das comunicações marítimas era tal que, entre duas ligações consecutivas com o Faial – de que são exemplo as dos iates Novo Feliz, a 11/11/1864, e Santa Cruz, a 11/04/1865 –, chegaram a mediar cinco meses.

1893 - Flores -> Lisboa
Mas como tudo isso teria mudado, se o Governo, à entrada do último quartel do século XIX, tivesse aceite a proposta que lhe foi então apresentada por uma companhia estrangeira para fazer passar pelas Flores um cabo submarino que ligasse os Estados Unidos à Europa, obrigando-se aquela a construir um porto de abrigo para 12 navios na baía da Ribeira da Cruz?! Só que Lisboa não gostou da proposta e indeferiu o requerimento – em lugar daquela linha, devia a companhia fazer outra de Lisboa a S. Miguel e ainda mais uma de S. Miguel às Flores. Na disputa haviam-se intrometido, há muito, não apenas S. Miguel mas também o Faial, onde a Junta Geral do Distrito da Horta representou ao Governo, em Novembro de 1880, no sentido de que o cabo submarino entre Lisboa e os Estados Unidos não deixasse de tocar aquela ilha.

1894 - Flores -> Lisboa
Em representação enviada à Câmara Legislativa, a Sociedade de Geografia de Lisboa ainda defendeu a ideia de que o cabo submarino, quer directamente, quer por meio de um ramal, amarrasse nas Flores, por ser “excepcional e altamente vantajosa sob tantos aspectos” a posição geográfica da ilha. E para reforçar a ideia, invocava, também, a mesma sociedade os elevados interesses da “meteorologia geral e nacional, cujas observações e previsões consideravelmente teriam a lucrar na comunicação telegráfica do continente europeu com aquele posto avançado para o oeste”, e da navegação e comércio, já que a ilha das Flores “se acha no caminho obrigado de toda a navegação de vela que do Atlântico Sul se dirige para o Centro e Norte da Europa e ainda da de vapor que da Mancha se dirige para a América Central e vice-versa”.

Inaugurado a 27 de Agosto de 1893, o cabo entre Lisboa e os Açores ficou-se, porém, pelo Faial, onde, até 1928, viriam a amarrar um total de 15 cabos submarinos, transformando a pequena cidade da Horta num dos maiores centros mundiais de comunicações. Por aqueles dias, a imprensa faialense, fazendo eco de uma promessa nunca cumprida, ainda noticiou que o troço de cabo ali deixado pelo vapor La Seine seria lançado até às Flores já na Primavera seguinte. Até hoje!

Projectos e iniciativas


Há uma estranha (e injusta) crueldade nos tons com que As Ilhas Desconhecidas pintaram a ambiência humana de Santa Cruz – naquele princípio de Verão (ainda que enevoado) de 1924, só a generalização dalguma ocorrência particular menos feliz pode ter levado Raul Brandão a “descobrir” que a gente enterrada há cinquenta anos se encontrava outra vez nas Flores, “viva e aferrada às mesmas palavras e às mesmas manias do passado, numa meia sombra em que se cria bolor”? Para ele, o Purgatório era aqui.

Ao tempo, porém, Santa Cruz, então com cerca de duas mil almas, não seria muito diferente de qualquer outra pequena vila de um país pequeno e pobre como era Portugal. As escolas, e todas de “primeiras letras”, eram poucas, os transportes, mesmo dentro da ilha, eram um calvário por falta de estradas dignas deste nome, e o hospital, que até existia, andava desde Maio sem médico por este ter falecido. De tal sorte que, no Verão de 1925, quando a ilha foi duramente flagelada pela “diarreia de sangue” que começara nos Cedros, vitimando nas Flores largas dezenas de pessoas, o primeiro remédio à mão foi uma “poção mágica” – à base de xarope ratânhia, subnitrato de bismuto, benzonaftol e láudano – receitada por um médico da Horta a instâncias do jornal O Florentino, que prontamente a divulgou depois nas suas páginas, acompanhada de algumas indicações consideradas úteis.

Concomitantemente, em Santa Cruz – onde alguns meses antes (31/12/1923) falecera o autor das Almas Cativas – assistia-se, também, a uma interessante actividade sócio-cultural. À época, o Teatro Gil Vicente abria já, com alguma regularidade, as suas portas para espectáculos da Arte de Talma, na vila rivalizavam as filarmónicas União Musical Florentina, da qual Roberto de Mesquita tinha sido primeiro clarinete, e União Musical Operária de Nossa Senhora da Conceição, e, em termos de imprensa, O Florentino, fundado dois anos antes, era somente o mais recente da meia dúzia de jornais – Jornal-Rádio (1915), Açoreano Ocidental (1917), Seringa (1917), O Atlântico (1919), O Jorge (1920) – que Santa Cruz vira nascer em outros tantos anos.

A fundação, logo a abrir o século XX, da Caixa Económica Florentina, SARL, com o declarado propósito de apoiar o pequeno comércio local, é igualmente um bom exemplo do espírito de iniciativa que então se vivia em Santa Cruz, independentemente do facto dos maus resultados financeiros daquela sociedade depressa terem conduzido à sua dissolução, em Agosto de 1912.

Em contrapartida, o negócio da produção de leite e fabrico de manteiga florescera rapidamente na ilha, por força da concorrência induzida pela criação dos vários “sindicatos agrícolas”, fundados sob a égide do padre José Furtado Mota.

O primeiro foi o do Lajedo, que começara a funcionar ainda em 1915 com o estatuto da “mútua confiança” dos seus sócios, mas logo o movimento cooperativista alastrou por toda a ilha, superior e indiferente à violência dos ataques que lhe moveram – foram as reuniões vigiadas pela tropa, as ameaças e esperas em caminhos mal frequentados, o “assalto” à fábrica do movimento em Santa Cruz ou, até, a perseguição, por uma canhoneira de guerra, do navio Granja, que ousara embarcar clandestinamente nas Flores 32 toneladas de manteiga e 430 cabeças de gado que estavam “proibidas” de sair da ilha.

Nem mesmo a vila de Santa Cruz, onde era mais estreito o conúbio entre os industriais e a autoridade concelhia, logrou resistir a este apelo cooperativista – em 1919, numa altura em que na vila existiam seis fabriquetas de manteiga, já laboravam, também, na Ribeira dos Barqueiros e na Rua da Aresta as desnatadeiras de duas “fructuárias”, ainda que estas, na falta de enquadramento legal, se assumissem como pertencentes ao “Grande Sindicato do Lajedo”. Nisto, tinha razão Raul Brandão: “Dão leite os montes e os vales, e até dão leite as crateras dos pacíficos vulcões (…). 


Um grande jorro branco corre de toda a parte para as fábricas, se transforma em manteiga e é embarcado para esse mundo.” Graças ao preço então alcançado pela manteiga, exportada para Lisboa a preços proibitivos para a generalidade dos florentinos, o leite nas Flores, pela primeira vez desde sempre, valia quase ouro e como tal era também disputado pela indústria transformadora. Por via disso, que tem intrinsecamente a ver com as leis do mercado e não apenas com a “lei do menor esforço”, quase desapareceram da paisagem da ilha as searas, que rapidamente foram substituídas por pastagens.

Baleação nas Flores
Por essa altura, trabalhava-se igualmente em Santa Cruz na constituição da Empresa de Pesca de Baleia Esperança, Limitada. Dois dos seus primeiros botes, que haviam sido adquiridos no Faial com os respectivos apetrechos, chegaram às Flores, a bordo do vapor S. Vicente, dos Transportes Marítimos do Estado, logo no início de Janeiro de 1924. E apenas oito meses depois, a 31 de Agosto, eram também apresentadas ao público, nos Paços do Concelho, em Santa Cruz, as bases de um outro grande e ambicioso projecto, que visava a “montagem da luz eléctrica” nas Flores.

Basta de exemplos para contrariar aqueles que dizem não haver, então, iniciativa na ilha! E que em Santa Cruz, a quem não trabalhava só restaria “sentar-se nos bancos de pedra da Misericórdia e esperar a morte”!

População e desenvolvimento


Foi preciso chegar à segunda metade do século XX para que o Concelho de Santa Cruz ultrapassasse, pela primeira vez, a barreira dos 50% da população das Flores. Os primeiros dez recenseamentos gerais da população, realizados entre 1864 e 1960, dão a este concelho uma média de 46,52% da população da ilha, com um máximo de 4.643 habitantes no primeiro censo. No recenseamento de 1970, porém, o Concelho de Santa Cruz já detinha a maioria a população da ilha (53,7%), e, daí em diante, maugrado um acentuado decréscimo populacional da ilha (10.508 habitantes em 1864 para somente 5.379 em 1970), consegue mesmo consolidar essa posição liderante – 56,4% em 1981, 60,7% em 1991, 62,4% em 2001.


Como vila, a verdade é que Santa Cruz desde há muito que se assumia como a “capital” de facto (de jure fora-o no período de 1895/98, com a extinção temporária dos concelhos das Lajes e do Corvo) das duas ilhas do grupo ocidental. Para tanto, contribuíra decisivamente a sistemática sediação, nesta vila, da quase totalidade dos serviços das administrações central e regional e ainda dos principais equipamentos e infra-estruturas entretanto construídas na ilha. De tal forma que, nos últimos 60 anos, a Santa Cruz ter-se-á escapado, grosso modo, a localização da Estação Radionaval, do Posto Agrícola, do porto comercial…e pouco mais. Consequentemente, ao consolidar essa sua posição de principal pólo socioeconómico da ilha, Santa Cruz atenuava, também, os efeitos da forte corrente emigratória para a América do Norte e conseguia mesmo estabilizar a sua população, ao contrário do que sucedeu no conjunto das demais povoações das Flores – de 1960 para 2001, a vila de Santa Cruz passou de 1.898 para 1.810 habitantes (somente menos 4,63%), enquanto no resto da ilha a população caiu a pique, passando de 4.684 para 2.185 pessoas (menos 53,35%).

Aeroporto das Flores
A tudo isto não foi naturalmente alheia a instalação, na ilha das Flores, de uma estação francesa de rastreio de mísseis balísticos sem ogivas nucleares, acordada a 7 de Abril de 1964 entre Portugal e França. Por força desse acordo, sucessivamente renovado até meados de 1993, data em que expirou, a ilha beneficiou da construção, num curtíssimo espaço de tempo, de um conjunto infra-estruturas, orçadas em cerca de 100 mil contos, algumas quais ainda inexistentes, à época, em várias das outras ilhas açorianas. Ponto de referência desse “mundo novo” que desembarcava nas Flores, mas agora falando francês e não o americano de outrora, a Estação Francesa de Telemedidas, que integrava uma zona residencial com várias moradias e uma “cercle-mess” que o vulgo mais impressionável logo baptizou “Hotel dos Franceses”, foi inaugurada a 6 de Outubro de 1966. Ao tempo, já estavam também concluídas as obras de beneficiação do Porto Velho, em Santa Cruz, e a Ponta Delgada, onde a estação francesa possuía vários pontos técnicos, podia finalmente aceder-se em viatura auto, construída que estava o troço de estrada, com 11 quilómetros, que liga esta freguesia à dos Cedros. Depois, foi a passagem da Delegação Marítima à categoria de Capitania (com o consequente direito a ter sede própria, colocada a concurso em 1967), o Aproveitamento Hidroeléctrico da Ribeira da Fazenda d’Além (inaugurado em Outubro de 1967), a construção da pista do Aeroporto (estreada a 15 de Outubro de 1968 por um Dakota em serviço de urgência médica) e a ampliação do Hospital Sub-Regional (concluída em 1969).

De forma particular para Santa Cruz, aqueles foram, em boa verdade, tempos memoráveis – porque nunca, como então, se assistira na ilha das Flores a um tão extraordinário “boom” de desenvolvimento e progresso.

Bibliografia
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SOUSA, João Teixeira Soares de: Os Silveiras dos Açores, Minerva Calhetense, Calheta de S. Jorge, 1920.

Texto de Francisco Gomes
(Investigador da história das ilhas das Flores e do Corvo) 
In Instituto Açoriano de Cultura

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